Sábado. Dia em que comi pela primeira vez comida de Senegal e Cabo Verde. Sábado também é o nome da cozinheira e proprietária do Pó di Buli das Okinkas, a mesma moça que me acolheu com um sorriso quando esbarrei em seu restaurante a caminho da minha aula de percussão, dias antes. Um cartaz havia me chamado atenção — “comida africana” —, e eu parei brevemente para perguntar a ela “de que país é a comida que vocês fazem?”, ao que respondeu, sorridente, “cada fim de semana é um país diferente” e explicou que lá abriam todos os dias, mas aos sábados e domingos faziam estes pratos especiais. Falei que voltaria outro dia e, dez dias depois, voltei.
Cafriela, Tchep, Cachupa, Caldo de Mancara… Nunca tinha ouvido falar de nenhum desses pratos. Tenho um repertório muito limitado sobre pratos africanos, a maioria das coisas que conheci foram estudando a comida do nosso continente e os pratos que nasceram dessa influência, muito condicionada, obviamente, às condições socioambientais que africanos foram submetidos aqui.

Okinkas é um espaço pequeno, que abriga um balcão e umas poucas mesas, com as paredes cheias de cartazes impressos e outros tantos improvisados anunciando o que servem e como funcionam. É daqueles lugares que nascem contracorrente, suponho, de um desejo e uma força interna, sem pedir licença, se organizando no fazer — como aquelas plantas que teimam em brotar por entre as pedras das calçadas, mostrando que não importa o que façam, elas darão um jeito de existir, adaptando-se, aqui e ali, resistindo. Aos fins de semana o restaurante acaba chamando mais atenção, com as mesas ao lado de fora, suas toalhas amarelo-vivo — um dos poucos espaços abertos no calçadão da João Pinto após o meio-dia.
Os pratos disponíveis no sábado em que fui eram o Tchep e a Cachupa; fui na primeira opção, de Senegal, desejosa de peixe há dias, e de suco de baobá — mais precisamente do seu fruto, a múcua ou cabacera —, que encontramos em diversos países africanos e também aqui no Brasil, árvore sagrada do Candomblé. Pouco tempo depois recebi um prato muito — ênfase no muito— bem servido, com arroz como base, cenoura, repolho, batata doce e aipim cozidos e uma posta de peixe (que soube depois ser tilápia) frita — além de um potinho com pimenta e uma tigela com o caldo e mais alguns legumes cozidos.

Dando as primeiras garfadas no arroz vermelhinho, arrisquei que aquele deveria ser o sabor do arroz Jollof que eu havia estudado tempos atrás. Os sabores do prato todo me eram muito familiares, o que me deixou curiosa para saber se havia alguma dificuldade de encontrar alguns ingredientes aqui no Brasil ou se, de fato, tínhamos muito mais em comum nos sabores das nossas comidas do que costumamos pensar — tanto nas técnicas e modos de fazer, quanto nos ingredientes e temperos. Conversando mais tarde com Sábado, ela me confirmou que é fácil encontrar os ingredientes necessários no Brasil; mesmo que em Florianópolis existam poucos restaurantes especializados em comida africana, outras cidades e estados já possuem uma grande oferta, dando acessibilidade aos ingredientes.
Mais tarde, procurando mais informações sobre o prato, confirmei minha suspeita. O arroz Jollof está sim associado ao Tchep — Ceebu Jën, Thiéboudienne, Tieb —, sendo considerado uma de suas muitas variações ou, em alguns casos, apenas mais um nome para o mesmo prato. O Ceebu Jën — no idioma Wolof, “peixe com arroz” — que teria sido criado por Penda Mbaye (cozinheira na casa do governador da colônia em Saint-Louis), tem sempre esta base de legumes, arroz e peixe. O prato, portanto, tem suas origens em parte a ingredientes locais, mas é carregado, desde sua criação, da influência do colonizador que trouxe o arroz da Indochina e o tomate da América — fica aqui minha dúvida se podemos chamar de “influência” quando se trata de opressão colonizadora.

Enquanto comia meu Tchep, consegui dar umas colheradas também na Cachupa alheia, prato de Cabo Verde — que de forma semelhante ao anterior, por “influências” colonizadoras, também mistura ingredientes de vários continentes. Eu acreditava que este cozido traria sabores mais familiares, por se assemelhar a nossa feijoada — leva feijão, milho branco, carne bovina, frango, bacon e calabresa —, mas surpreendentemente ao meu paladar era mais diferente que o senegalês. Havia algum tempero que não costumamos usar no nosso feijão e, pela acidez, arrisco dizer que era limão, mas não só. Talvez seja até um toque da própria cozinheira, só poderei afirmar numa próxima oportunidade que, espero, será em breve.
Estava muito feliz por estar comendo uma comida nova — com certeza das minhas coisas favoritas da vida —, quando a Sábado, trazendo um prato com três ingredientes que eu nunca tinha visto antes nas mãos, senta na cadeira ao lado e começa a explicar o que é cada um. Fiquei emocionada. É por momentos assim que entendo o porquê da comida ser meu objeto de estudo. Ela proporciona encontros — consigo mesmo e com os outros —, possibilita diálogos, noções de identidade ao mesmo tempo que confirma o ser social que somos. Conviver. Compartilhar. Palavras, não à toa, com origem no alimento.

O maior ingrediente, uma polpa seca com fiapos, era a múcua, fruto do Baobá. Seu suco me lembrou umbu, mas minha mente pode estar fazendo uma má associação, já que tomei suco de umbu apenas uma vez na vida. As outras duas frutas, pequenininhas, se chamavam veludo — azedinha e deliciosa, cresce em arbustos baixos e tem uma casca preta; e foroba — mais doce e “esfarelenta”, presente nas vagens de uma árvore que também fornece as sementes que dão origem a um tempero chamado soumbalá. Por terem sabores muito inéditos para mim, ficarei devendo algum tipo de comparação com outras frutas; provavelmente serão elas, a partir de agora, minhas referências futuras. Sábado contou que essas duas menores (que soube depois serem típicas de Guine-Bissau) são frutas do mato, não comuns de encontrar na cidade e que, assim como a múcua, fazem de tudo com elas: suco, mousse e sorvete, por exemplo.
De Guine-Bissau, Sábado veio para o Brasil em 2014 aos 19 anos, primeiro para o Ceará — “sou nordestina”, ela disse algumas vezes, em meio a risos —, e depois para Florianópolis, onde está desde 2020. Antes de abrir o Pó di Buli das Okinkas, ela participava de feiras, vendia comida em parceria com outros bares do Centro; isso tudo enquanto estudava primeiro mestrado e depois doutorado. Hoje está na luta para firmar seu restaurante, um lugar que, conta ela, acabou virando ponto de encontro para outros africanos que se sentem acolhidos por sua comida.

Para todas as pessoas migrantes, a comida é um elemento ainda mais importante e determinante: é ela que mantém os laços com os países de origem, resgatando memórias, reafirmando suas raízes. Mas é ela, também, um instrumento de construção de novas relações, um meio de se apresentar aos seus novos lares, serem aceitos, respeitados, dando a eles senso de pertencer. Afinal, a terra deveria ser livre, certo?
Florianópolis carece de restaurantes especializados em culinárias internacionais, estamos ainda presos nas alusões à França e Itália, mas vejo, aos poucos, isso começar a mudar. Que a iniciativa de Sábado possa se firmar em meio às dificuldades que é manter um aluguel no Centro, em meio a este processo de gentrificação que vivenciamos, e seguir sendo espaço de acolhimento para os africanos e de descobertas para todos os demais.
SERVIÇO
Local: Calçadão João Pinto, n. 103, Centro leste de Floripa.
Horário: Aberto todos os dias, das 11:30 às 00:00. Fins de semana até 02:00.
Mais informações: no perfil Gastro Bar Africano ou pelo 4896242124.
REFERÊNCIAS
BERISIO, Serena. Guiné-Bissau da terra à mesa – produtos e pratos tradicionais. Fundação Slow Food para Biodiversidade.
LUCAS, Ángeles. “Ceebu jën”, el plato de los cuatro continente. Site El País, 2019.
MOREIRA, Evelize. Culturas alimentares e imigração: as dimensões da comida de teranga. Blog Migrações em Debate, 2024.
NIANG, Fátima Fall. Quem inventou o arroz jollof? Senegal vence Gana e Nigéria e conquista o título. Site The Conversation, 2023.
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